Alexsandro Araujo
Tendo como fundamento o funcionalismo Durkheimiano, faremos uma comparação com relação ao funcionamento da sociedade e do corpo humano, como um organismo vivo. Baseado em Durkheim, as empresas, as instituições (públicas e privadas), os grupos sociais, políticos, religiosos etc. constituem a sociedade, e o relacionamento entre esses entes, de forma interdependente, faz com que a estrutura funcione de forma autônoma, e muitas vezes coesa.
Assim, os vários órgão são fundamentais para o funcionamento do corpo humano e o problema em um dos órgãos pode desestruturar o corpo, requerendo uma atenção e cuidado com a saúde. Qualquer mudança no funcionamento de um dos órgãos da sociedade pode desestruturar todo o grupo social. Assim, o bom funcionamento de todo corpo dependerá da integração e coesão de suas partes.
Ainda, como todo organismo tem o seu sistema de defesa natural, poder-se-ia dizer que a sociedade, sendo um organismo, também tem a capacidade de criar os seus próprios anticorpos. Um sistema de proteção contra atitudes que possam trazer prejuízos contar o bom funcionamento do corpo. Por isso algumas pessoas se referem a determinados grupos como um corpo social.
O que são anticorpos?
Anticorpos são glicoproteínas, também chamadas de imunoglobulinas, que possuem como principal função garantir a defesa do organismo. Essas glicoproteínas de defesa atuam de diferentes formas para evitar que uma partícula invasora cause danos à saúde. (SANTOS, 2020). Ou seja, qualquer conduta desviante à coerção impostas pelos grupos sociais pode ser corrigida pelos atores sociais como forma de se manter o bom funcionamento do corpo social.
O que é um fato social?
Para Durkheim (2012), “fato social” é um objeto de estudo da sociologia. Para ele o fato social é algo externo, coercitivo generalizador. Ele parte da biologia e do funcionamento do organismo para explicar a sua teoria estruturalista.
A consciência pública contém todo ato que a ofende por meio da vigilância que ela exerce sobre a conduta dos cidadãos e as penas especiais das quais dispõe. Em outros casos, a repreensão é menos violenta; [porém], ela não deixa de existir. Se eu não me submeto às convenções do mundo, se, ao me vestir, eu não dou a mínima atenção aos costumes de meu país ou de minha classe, o riso que provoco, a alienação a que me submetem, produzem, mesmo que de maneira atenuada, os mesmos efeitos de uma pena propriamente ditam. (DURKHEIM, 2012, p. 32).
Precisamos também entender como as características de vigilância e punição analisadas pelo sociólogo e filósofo Michel Foucault se complementam com o pensamento Durkheimiano. Foucault é um sociólogo francês que desenvolveu analises importantes sobre a sexualidade, o surgimento das prisões e dos manicômios, e sobre as características que o poder exerce na sociedade e a sua ação sobre os corpos. Para Foucault (2012), o principal alvo de ação do poder é o corpo. Em relação a vigilância e punição, podemos partir do conceito do panopticismo.
O panoptico.
Foucault aponta que “Nos anos de 1830, o Panoptico se tornou o programa arquitetônico da maioria dos projetos de prisão”. (1979:249) e que outras instituições além da prisão adotaram suas disposições arquitetônicas para uma ampla variedade de propósitos. Como exemplo desta adoção, Foucault detalha todas as características panópticas da arquitetura do manicômio no início do século XIX, demostrando que a arquitetura panóptica do edifício manicomial foi interpretada como a própria cura para a loucura (2006ª: 102-107). Esta aquisição transinstitucional das disposições arquitetônicas do panoptico intensificou a disseminação do poder disciplinar. (HOFFMAN, 2018, p. 51).
Henry Louis Mencken ironiza a respeito do bom senso e da consciência das pessoas, ele diz: “A consciência é uma voz interna que avisa quando alguém está me olhando”, e esse é sempre um conceito atual, pois, nos mostra que o conceito do “panopticismo/vigilância” ainda está constante nas instituições, sejam, públicas, privadas ou o olhar do outro sobre nós, pois molda o comportamento dos nossos corpos. Segundo esse ditado quando não estamos nos sentindo observados cometemos algumas infrações como, ultrapassar um sinal vermelho, jogar lixo no chão, fazemos coisas entre quatro paredes, e dizemos o que não diríamos, ou faríamos em público. Só que de acordo com uma das teorias Bourdieusiana, o habitus, mesmo quando não estamos diante de alguém continuamos com certos comportamentos, por que, naturalmente, internalizamos as características da normatividade. Na visão de Foucault, docilizamos o nosso comportamento colocando o desvio sob pena de punição, que, no caso, não necessariamente vai ferir o corpo, mas também pode ser uma punição simbólica.
[...] entre as muitas lições do panopticismo está a de que o poder que parece focado em um indivíduo está de fato “distribuído” por toda a estrutura, de modo que cada indivíduo é simultaneamente “objeto” e “sujeito” desse poder: o prisioneiro é “vigiado”, mas está sendo treinado para vigiar a sim mesmo, para ser o seu próprio inspetor. (HOFFMAN, 2018, p. 80).
O modo como os meninos e as meninas devem sentar, andar, se expressar etc. são predeterminados por ocasião das instituições que disciplinam e tornam comuns determinados tipos de caráter, tipificação ou conduta institucionalizada. Entenda-se aqui instituição por família, escola, igreja, policia etc.
A normatividade[1] pode ter um caráter fim ou ser o meio para se executar uma determinada ação. “Uma norma é uma descrição verbal do curso concreto da ação assim considerada desejável, combinada com uma injunção para fazer com que certas ações futuras estejam de acordo com esse curso”. (PARSONS, 2010, p. 113).
A sociedade é composta de normas e valores os quais necessariamente devem ser respeitadas, e essa normatividade constituem as leis e a ordem necessárias para que a sociedade se mantenha coesa, e também influenciam na cultura de cada uma delas.
Pois bem, de acordo com a teoria dos fatos sociais de Durkheim e a teoria de vigilância e punição de Michel Foucault, se os fatos sociais são considerados predeterminantes da ação dos atores sociais a vigilância constante dos indivíduos uns sobre os outros, como afirma Foucault, podem ser considerado o que coage os atores a não transgredir as normas, como uma espécie de anticorpos do grande e extenso corpo social que atuam para manter a estabilidade social.
A fim de evitar que o desvio se dilua num oceano de diferenças, deve-se atentar para a norma: o desvio é falta de obediência social. Mesmo arriscando a confusão de uma categoria da não conformidade com outra, um desvio é punível, enquanto que, uma simples diferença não o é (ela pode consistir em um meio de distinção social, frequentemente é causa de exclusão a um status social menos valorizado). (ROBERT, 2011, p. 47)
Podemos observar a questão da conservação da normatividade em escalas, micro ou macro social. Pois, a conservação e a vigilância das normas não acontecem somente nos grupos de grande escala, podemos imaginar um grupo pequeno, de três pessoas, que tem preferência por algum tipo de estilo musical, o rock, por exemplo. Pode ser definido uma saudação comum, um tipo de gesto para que os integrantes se identifiquem, uma cor que os defina, um estilo de roupa etc. e essa tipificação institucionalizada pelo grupo vai ser passível de vigilância por todos os integrantes do grupo, qualquer desvio é passível de punição para que as partes do grupo se mantenham coesas. É sempre feita uma manutenção como forma de vigilância e punição para corrigir os infratores, nas quais, posteriormente podem vir as sanções. Existem dois processos de aprendizado e de consolidação da experiencia que reforçam as tipificações, o processo de sedimentação e tradição. Como se fosse uma ritualização, que cria padrões a serem seguidos.
Sedimentação e tradição – Somente uma pequena parte das experiencias humanas são retidas na consciência. As experiencias que ficam assim retidas são sedimentadas, isto é, consolidam-se na lembrança como entidades reconhecíveis e capazes de serem lembradas. (BERGER ,Peter L.. 2014, p. 92).
Esse processo de sedimentação facilita a leitura dos acontecimentos na sociedade. Dessa forma eu posso pressupor que um policial está cumprindo o seu papel ao abordar um infrator de alguma norma social, inclusive, a leitura que será feita será a de que a policia está cumprindo o seu papel, “abordando um marginal”. As pessoas que não andam no mesmo sentido das normas sociais são colocadas à margem da sociedade. O processo de sedimentação e tradição facilitará a leitura dos acontecimentos e das tipificações e dar um nome ao que está acontecendo.
Papeis – Isto implica entre indivíduos, que o primeiro tem em comum com os outros finalidades especificas e fases entrelaçadas de desempenho e, ainda mais, que são tipificadas não apenas ações especificas, mas também, formas de ação. (BERGER ,Peter L.. 2014, p. 97).
Todos os indivíduos exercem vários tipos de papeis durante a vida, existe o papel principal, que vai ser predominante e os papeis secundários. O indivíduo pode ser: pai e ao mesmo tempo filho, pode ser professor e aluno em outra instituição, pode ser um policial ou um religioso de renome, e em cada caso ele vai ter que atuar de acordo com o papel que estiver exercendo no momento. Para que a sua atuação seja legitimada pelo reconhecimento do outro, segundo Goffman[2], ele tem que ser convincente e se esforçar para que o outro acredite na sua interpretação. Outra forma de delimitar o comportamento das pessoas é o determinando o comportamento baseando nas tradições e na religião. Presume-se que um grande percentual de pessoas, em todo o mundo, professam algum tipo de religião e, em algum momento, antes da criação das leis a normatividade foi predeterminada pela religião, e se considerarmos a religião cristã, pode ter nascido aqui o primeiro e mais eficiente sistema de vigilância e punição, pois, dada a onisciência, onipotência e a onipresença da divindade, não tem como cometer um crime e se esconder, ou omitir a intenção pois Jeová saberá da intenção bem antes que se cometa o delito e mesmo que se cometa e o indivíduo consiga fugir, ninguém consegue se esconder de Deus. Aqui não tem a necessidade de câmeras ou panoptico para inibir a infração pois isso já está do lado de dentro de nossas “cabeças”. Como “o prisioneiro que é “vigiado”, mas está sendo treinado para vigiar a sim mesmo, para ser o seu próprio inspetor”.
Grande parte da população mundial apresenta-se filiada a algum tipo de religião. Michel Malherbe, em seu livro les religions de I’humanite, fornece-nos preciosos índices da distribuição de correntes religiosas no mundo. Ele apresenta, à página 44, a seguinte distribuição populacional: ateus, 29%, cristãos, 28%, islamitas, 18%, hindus, 15%, budistas, 05%, seguidores de outra religião, 05%. Podemos concluir que mais de 70% da população mundial segue algum tipo de religião. Os 29% rotulados ateus não foram estudados e pesquisados por esse autor com a finalidade de verificar onde são investidos os mecanismos e as funções encontrados na religião, tais como: a omnipotência, o sagrado, e o profano, o divino, os rituais etc. (AMARO, 2003, p. 69).
A religião é uma coisa que está fortemente ligada à cultura das sociedades, nas quais estão inseridas, e “coincidentemente” sempre relacionadas a alguns mitos e símbolos.
E, na história da humanidade, não há registro em qualquer estudo por parte da História, Antropologia, Sociologia ou qualquer outra ciência social, de um agrupamento humano em qualquer época que não tenha professado algum tipo de crença religiosa. As religiões são, então, um fenômeno inerente à cultura humana, assim como as artes e técnicas. (MOREIRA, 2008; Pg. 249).
Teoricamente, baseado na grande quantidade de grupos nos quais vivemos e estamos imersos, entende-se que também estamos sempre atuando como vigilantes uns dos outros reprovando ou confirmando a atitude do outro. “Menino veste azul, menina veste rosa...”, “homem não casa com homem nem mulher com mulher...”, “roqueiro tem que odiar pagode...”, “evangélico não pode ler livros seculares...”, “gays não podem demonstrar afeto em público”... etc.
Um teórico importante e pertinente é Antony Giddens teórico da teoria da estruturação. As instituições e as normas são estruturadoras das ações dos indivíduos e os mesmos, ao agirem de acordo com as normas estão estruturando a estrutura. Reforçando as normas as quais estão se sujeitos.
Nessa perspectiva a anomia poderia ser uma doença social.
BIBLIOGRAFIA
AMARO, J. W. (2003). Temas essenciais. São Paulo: Lemos Editorial.
PETER L. BERGER, T. L. (2014). A Construção Social da Realidade. Rio de Janeiro: Vozes.
DURKHEIM, É. (2012). As regras do metodo sociologico (1ª ed.). (W. Solon, Trad.) São Paulo - SP: EDIPRO.
FOUCAULT, M. (2012). Vigiar e Punir. Petropolis - RJ: VOZES.
GOFFMAN, E. (1985). A representação do eu na vida cotidiana. (M. C. Raposo, Trad.) Petrópolis: VOZES.
GUERREIRO, E. (03 de Janeiro de 2008). A IDEIA DE MORTE – do medo à libertação. Algarve, Portugal. Acesso em 2020, disponível em http://www.scielo.mec.pt/pdf/dia/v28n2/v28n2a12.pdf.
HOFFMAN, M. (2018). Michel Foucault: Conceitos Fundamentais. (D. TAYLOR, Ed., & F. Creder, Trad,) Petropolis: Vozes.
MERTON, R. K. (1970). Sociologia: Teoria e estrutura. Belo Horizonte: MESTRE JOU.
MOREIRA, A. (03 de Janeiro de 2008). A religião como Fenomeno Propulsor da Ecocultura. São Leopoldo, RS, Brasil. Fonte: http://www.anais.est.edu.br/index.php/congresso/article/viewFile/5/20.
ROBERT, P. (2011). Sociologia do crime. Petropolis - RJ: VOZES.
SANTOS, Vanessa Sardinha Dos. "O que é anticorpo?"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/biologia/o-que-e-anticorpo.htm. Acesso em 10 de janeiro de 2020.
REFERÊNCIAS
[1] Teoria do desvio; MERTON, R. K. (1970), Merton faz uma abordagem sobre a tensão entre a normatividade e a cultura. Para ele, culturalmente as pessoas buscam o sucesso financeiro como forma de ser bem sucedido na sociedade só que essa necessidade do sucesso esbarra nas normas e na legalidade. Se o indivíduo não respeitar as leis e tentar ficar rico cometendo atos ilegais, como vender drogas, tráfico de armas etc. vai ser punido pelo sistema penal de tal sociedade. A cultura vai esbarrar na normatividade, contudo, há alguns casos de indivíduos que não se incomodam da origem da riqueza de determinadas pessoas e dão mais valor a cultura desconsiderando o valor da normatividade. Não se sentirá constrangido em posar ao lado de algum criminoso em uma foto, por exemplo. Com a exceção desses casos, A cultura tem fortemente influencia no comportamento das pessoas. O fato de não se preocupar com as normas da sociedade é caracterizado como “anomia”, ausência de normas.
[2] (GOFFMAN, 1985), (A representação do eu na vida cotidiana).
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