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RESUMO DO LIVRO: Corrupção, Democracia e Legitimidade. Cap. [1]

Atualizado: 18 de mai.

CAPÍTULO I – A HISTÓRIA DO CONCEITO DE CORRUPÇÃO


Alexsandro Araujo


No primeiro capítulo de sua obra, Filgueiras (2008) realiza uma análise histórica do conceito de corrupção, abordando suas expressões ao longo do tempo, desde o mundo romano até os períodos medieval e renascentista, passando pelo pensamento político moderno. Além disso, o autor relaciona a corrupção com as crises de legitimidade, evidenciando suas implicações para o funcionamento das instituições democráticas.

Para introduzir a discussão, o autor faz referência à obra La Sereníssima República, de Machado de Assis, como uma alegoria que ilustra a complexidade do fenômeno da corrupção.

Nessa narrativa, o personagem Cônego Vargas encontra um ser aracnídeo  dotado da capacidade de falar. Com base nos preceitos da razão científica, Vargas propõe a construção de uma sociedade ideal entre os aracnídeos, a partir da organização racional das instituições políticas. Seu objetivo é criar um modelo de governo baseado na idoneidade moral, distinto da experiência humana corrompida.

O primeiro passo de Vargas foi a tentativa de estabelecer um sistema eleitoral eficiente. A princípio, adotou-se um modelo baseado em sorteio, que se mostrou inadequado diante do receio da escolha de líderes tirânicos. Em resposta, buscou-se desenvolver um sistema mais complexo e racional, que pretendia eliminar a corrupção por meio de regras mais elaboradas. No entanto, o processo político entre os candidatos Nebraska e Caneca revelou a persistência da manipulação e da retórica como instrumentos de disputa pelo poder.

A república das aranhas
A república das aranhas

Embora Nebraska tenha vencido pelas vias formais, Caneca reivindicou o cargo ao apresentar uma interpretação etimológica que associava seu nome ao do adversário. Por meio de artimanhas discursivas, Caneca conseguiu convencer os demais e assumir a liderança. Etimologicamente a palavra Caneca significa Nebraska, disse Caneca.

A narrativa revela que mesmo os sistemas políticos idealizados estão sujeitos à corrupção e à disputa de interpretações. Filgueiras (2008) destaca que a corrupção não é um desvio exclusivo de sistemas disfuncionais, mas uma possibilidade latente em qualquer configuração de poder. Ao longo da história, diferentes civilizações, como os fenícios e os atenienses, utilizaram-se da retórica como instrumento de persuasão política.

Adolf Hitler

A eficácia desse recurso também foi observada em contextos autoritários, como no regime nazista, no qual a oratória de Adolf Hitler desempenhou papel central na legitimação do poder. 

De acordo com o autor, o poder político depende fundamentalmente da legitimação simbólica pelos governados. Um poder legitimado, conforme argumenta, não necessita do uso da força para ser obedecido. A política, portanto, é atravessada por estratégias discursivas que moldam a percepção da população e asseguram a estabilidade das instituições.

Na alegoria da República das Aranhas, a falha não residiu apenas nas estruturas formais, mas na ausência de um fundamento moral prático, indispensável para a construção de um sistema político justo e resistente à corrupção (FILGUEIRAS, 2008).


A POLÍTICA, A CORRUPÇÃO E O CARÁTER HUMANO: Um olhar filosófico e político


A corrupção, ao longo da história, tem sido concebida como uma falha estrutural recorrente na prática política. Conforme argumentam pensadores clássicos como Maquiavel e Madison, o problema reside na própria natureza humana.


  • Maquiavel, em O Príncipe, sustenta que os homens são motivados por desejos, ambições e paixões, sendo necessário um governo que compreenda e administre essas características (MAQUIAVEL, 2000).

  • Madison, em O Federalista nº 51, reforça essa ideia ao afirmar: “Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário” (MADISON, 2003, p. 322).

Madison e Maquiavel
Madison e Maquiavel

Assim, compreende-se que o governo nasce justamente para conter os impulsos desmedidos dos indivíduos e garantir a ordem coletiva.

Na perspectiva de Leon Duguit, a política é entendida como poder, seja no sentido substantivo — a estrutura do Estado —, seja no verbo — o exercício da ação sobre os indivíduos. Esse poder tanto pode se manifestar como força coercitiva sobre os cidadãos quanto como a capacidade dos indivíduos se organizarem politicamente para influenciar e modificar o Estado, o que encontra respaldo no próprio direito constitucional.

A política também se expressa na arte do convencimento, onde o discurso, a persuasão ou mesmo a coerção moldam comportamentos e crenças, gerando conformidade sem necessariamente provocar questionamentos.

Nesse contexto, Filgueiras (2008) argumenta que a corrupção está intrinsecamente ligada à política de tal forma que se torna difícil distingui-las. O mito construído por Machado de Assis em La Sereníssima República simboliza essa associação. A alegoria revela que, mesmo em sociedades idealizadas, a corrupção emerge como fenômeno persistente, alimentada pela manipulação retórica e pela disputa de interesses. A tentativa de criar um sistema político perfeito entre aracnídeos fracassa exatamente pela natureza humana que, projetada nas criaturas, reproduz os mesmos vícios das estruturas humanas.

A luta contra a corrupção é constante e, muitas vezes, ineficaz. Mudanças no sistema partidário, nas regras de financiamento de campanha ou nas relações entre os poderes não são suficientes para erradicar práticas corruptas. No caso brasileiro, o sistema presidencialista de coalizão favorece a formação de alianças políticas sustentadas por trocas de favores, o que abre margem à corrupção institucionalizada. Apesar disso, como destaca Filgueiras (2008), é inaceitável naturalizar a corrupção como parte inevitável da política. Pelo contrário, a ciência política, embora recente, pode e deve contribuir para o fortalecimento das instituições democráticas e da moral pública.

O juízo social sobre a corrupção envolve critérios de moralidade. Espera-se que as instituições políticas ajam com base em valores éticos, de forma que a corrupção passe a ser vista como sinal do que o governo não deve ser. Tal raciocínio contribui para a construção de dicotomias — governos corruptos versus governos virtuosos —, oferecendo ao pensamento político categorias de análise para entender o exercício do poder e suas distorções.

Filgueiras (2008) também retoma o pensamento clássico, como o de Aristóteles, para mostrar que o conceito de corrupção está presente desde as primeiras reflexões sobre política. A palavra, cuja etimologia remete à putrefação e deterioração, representa a degradação moral e institucional provocada pela prevalência de interesses privados sobre os públicos.

Segundo Filgueiras (2008), para Aristóteles, todo regime possui um potencial degenerativo:


  • a monarquia pode se transformar em tirania;

  • a aristocracia, em oligarquia;

  • e a politeia, em democracia corrompida.

Aristóteles
Aristóteles

A solução proposta por Aristóteles e posteriormente por Políbio é a ideia de um governo misto, onde diferentes formas de governo se equilibram e fiscalizam mutuamente, evitando que um poder se sobreponha aos demais. Esse modelo se assemelha à divisão de poderes proposta por Montesquieu e operacionalizada em muitos sistemas contemporâneos, como o presidencialismo com freios e contrapesos. A descentralização do poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário é um mecanismo institucional que visa impedir abusos e conter a corrupção.

A virtude política, nesse sentido, é essencial. Governar exige a renúncia aos interesses particulares em nome do bem comum — a polis. Para Aristóteles, a política deve ser orientada pela ética, e um bom governo é aquele que busca a realização da justiça e do bem coletivo.

Separação dos poderes
Separação dos poderes

No entanto, a presença das paixões humanas — como o desejo de poder, riqueza e prestígio — representa um obstáculo permanente à virtude pública. Assim, a corrupção não é apenas uma ação, mas uma disposição interna, uma paixão, como já apontavam Maquiavel e Madison. Apenas por meio do cultivo da virtude e do fortalecimento das instituições é possível conter suas manifestações mais destrutivas.

Políbio
Políbio

Para Políbio, o antagonismo entre os poderes favorecia a estabilidade do governo. A república era considerada um bem sagrado pelos romanos e pelos povos que viviam sob seu domínio. No entanto, como não se podia esperar que todos os cidadãos fossem naturalmente virtuosos, surgem as leis como instrumentos para determinar e orientar a virtude por meio da sua observância. A honestidade, nesse contexto, aparece como uma das virtudes fundamentais para legitimar o bom governo, sustentado pela conduta ética dos cidadãos.

Cícero, por sua vez, complementa essa perspectiva ao destacar que a lei, por si só, é ineficaz se o cidadão não for educado no exercício da virtude. Para ele, a virtude se expressa no cumprimento dos deveres cívicos, sendo a corrupção a antítese da honestidade. Por isso, Cícero concebe a figura do "homem bom" como um ideal jurídico presente nas leis — aquele cuja conduta orienta-se pela moralidade pública.

Cícero
Cícero

Com a cristianização do Império Romano, uma nova filosofia política se instaura. Santo Agostinho defende que o cristianismo contribui para a diminuição da corrupção ao afastar o homem do amor à cidade terrena e aos bens materiais, orientando-o à busca pela cidade celestial e pela virtude divina. Dessa forma, o foco na salvação e no amor a Deus tenderia a conter as paixões e ambições corruptoras.

Entretanto, pensadores como Maquiavel e Gibbon interpretam a oficialização do cristianismo como um fator que precipitou a decadência romana, pois esvaziou o interesse político e cívico, levando à fragmentação do império. A filosofia aristotélica, então, perde espaço, já que a religião passa a predominar como orientadora da política. Aristóteles acreditava que a política poderia ser transformada pela virtude do cidadão; já a teologia cristã entendia a corrupção como uma consequência da queda do homem. Ainda assim, acreditava-se que o hábito virtuoso poderia ser restaurado pela fé.

Nesse cenário, a monarquia era vista como a forma de governo mais adequada, pois o monarca, por deter todos os bens, não teria nada a desejar que o corrompesse. Para o cristianismo, portanto, o governante ideal era aquele cuja virtude estivesse atrelada à fé e à autoridade religiosa, dando origem ao modelo do papado como figura incorruptível.

Assim, enquanto Aristóteles via na virtude um caminho para combater a corrupção, Políbio confiava na lei para coagir comportamentos virtuosos. Já o cristianismo oferecia a graça divina como meio de purificação e controle das paixões humanas, através do cumprimento dos mandamentos (não matar, não roubar, não cobiçar etc.).

Contudo, como a história demonstrou, nenhum governo escapou à corrupção. Isso porque a política é feita por homens — e não por deuses.

Segundo Fernando Filgueiras (2021, p. 42), a ciência política moderna provocou uma ruptura ao desvincular a corrupção de um problema puramente moral, compreendendo-a como uma questão institucional e legal.

Montesquieu, por exemplo, compreendia a República como uma forma frágil de governo, pois dependia da virtude e da moralidade dos cidadãos. Para ele, as desigualdades sociais minavam a virtude, dando origem a sentimentos como inveja e cobiça, que poderiam fomentar a corrupção.

Montesquieu
Montesquieu

Montesquieu propôs a punição moral — a exposição pública de atos corruptos — como uma forma de coerção para inibir desvios. Além disso, valorizou a monarquia constitucional com divisão de poderes como um modelo eficaz de contenção das paixões individuais. A república, sem freios institucionais sólidos, tornava-se vulnerável à corrupção, pois não dispunha de mecanismos que contivessem o ímpeto humano, levando à desordem social semelhante ao “estado de natureza” hobbesiano, no qual reinaria a luta de todos contra todos.

Nesse sentido, afirma-se que “[...] a corrupção seria a própria norma” (FILGUEIRAS, 2021, p. 51).

A saída, segundo Montesquieu, seria o princípio da honra — entendido como interesse institucionalizado — e a formação de estruturas políticas capazes de moderar os apetites do corpo político.

Filgueiras (2021, p. 61) defende a necessidade de jurisdições coercitivas para conter as arbitrariedades do poder, tanto do governo quanto dos legisladores. Essas arbitrariedades devem ser enfrentadas por um aparato legal que opera formalmente acima da moral, buscando neutralizar os interesses particulares.

A corrupção, assim, passa a ser vista não apenas como um problema ético, mas como uso arbitrário do poder — isto é, uma violação da legalidade e da impessoalidade que devem reger a administração pública.

Portanto, o descumprimento do dever político, mesmo sem intenção imoral, pode configurar corrupção, pois fere o princípio normativo que estrutura o funcionamento do Estado.

A política moderna, como destaca Filgueiras (2021, p. 71), se torna uma encruzilhada entre múltiplas racionalidades — jurídicas, morais, institucionais e estratégicas.

Maquiavel, ao desmistificar o Estado e desvincular a política da moral cristã, foi duramente criticado. Mas sua contribuição revela um aspecto essencial: a política é a arte de realizar interesses, e nem sempre a moral será seu fundamento. Ela pode operar verticalmente (do Estado ao povo), horizontalmente (entre indivíduos) ou de forma ascendente (do povo ao Estado).

Por fim, ao longo do primeiro capítulo, Filgueiras (2021, p. 79) realiza uma retrospectiva do pensamento político desde o período medieval até a modernidade, abordando os diversos entendimentos sobre a corrupção. Mesmo que sem seguir uma linha do tempo linear, sua análise evidencia que certos aspectos da corrupção são permanentes, apesar das transformações históricas. No próximo capítulo, o autor abordará a legitimidade nas democracias contemporâneas, suas crises e a persistência da corrupção.


BIBLIOGRAFIA


FILGUEIRAS, Fernando. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

MADISON, James. O federalista nº 51. In: HAMILTON, A.; MADISON, J.; JAY, J. O Federalista. Trad. e notas de Rodrigo Constantino. São Paulo: LVM, 2003.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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